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Por Eric Gil Dantas*

O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano 2023/2024, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Brasil tem o sexto maior coeficiente de Gini do mundo, e o primeiro da América Latina (a frente da Colômbia). São vários os motivos que fizeram com que o Brasil chegasse neste nível de concentração de renda, como a colonização, escravidão, economia agrária, elites extremamente atrasadas etc. Mas sem sombra de dúvidas, o sistema tributário brasileiro é um pilar de manutenção e aprofundamento desta mazela.

Em nosso país, os pobres pagam mais impostos do que os milionários, relativamente à sua renda. Isso ocorre, pois, a estrutura tributária é injusta, com um peso exagerado na tributação sobre o consumo e com isenção do Imposto de Renda sobre dividendos, gerando assim regressividade. E por isto é urgente inverter a lógica, e cobrar mais dos ricos e menos dos pobres.

Vejamos cada um dos problemas em detalhes.

  1. É falso que a carga tributária brasileira é alta

É sempre importante começar pela desmistificação do argumento de que no Brasil a carga tributária é excessiva. Pelo contrário, o nosso país tem uma carga tributária abaixo da média global. A carga tributária em relação ao PIB no Brasil é de 33,3%, enquanto na média da OCDE este número é de 34%. Estamos muito longe das maiores cargas tributárias do mundo: França (46,1%), Noruega (44,3%), Áustria (43,1%) e Finlândia (43%). Além do mais, diferentemente de quase todo o globo, financiamos um sistema gratuito e universal de Saúde, educação básica e superior, previdência social e um dos maiores programas de transferência de renda do mundo. Tudo isso com uma arrecadação muito menor (em termos relativos e absolutos) do que os países ricos.

Gráfico 1 – Carga Tributária (% do PIB) no ano de 2022

Fonte: Elaboração da Receita Federal com base nos dados da OCDE

  1. Tributamos demais o consumo e de menos a renda, lucro e capital

41% da carga tributária brasileira está baseada no consumo (ICMS, ISS, IPI, PIS, COFINS, CIDE e IOF), a quarta maior carga sobre o consumo dentre os países que a OCDE disponibiliza dados, e muito acima da média da própria OCDE, de 31%. Enquanto a carga tributária sobre a renda e o capital é a sexta menor, com apenas 28% do total da arrecadação, bem abaixo da média da OCDE, de 36%.

Gráfico 2 – Percentual da carga tributária por base de incidência

Fonte: Elaboração da Receita Federal com base nos dados da OCDE

  1. Tributar o consumo penaliza os mais pobres

A tributação sobre o consumo é regressiva porque incide de forma proporcionalmente mais pesada sobre os estratos mais pobres da população, em comparação aos mais ricos. Segundo estudo do IPEA, enquanto os 10% mais pobres comprometem cerca de 23,4% da sua renda total com tributos indiretos, os 10% mais ricos destinam apenas 8,6%. Isso ocorre porque as famílias de baixa renda consomem a maior parte (ou mais do que) da sua renda, não tendo margem para poupança, e acabam pagando mais impostos proporcionalmente, já que a carga tributária indireta recai sobre o consumo de bens e serviços. Já os mais ricos poupam ou investem uma parte significativa da renda, o que escapa à incidência dos tributos indiretos. Assim, o sistema tributário brasileiro, fortemente baseado na tributação sobre o consumo, amplia as desigualdades sociais ao invés de reduzi-las.

Gráfico 3 – Incidência dos tributos indiretos sobre a renda total, segundo décimos de renda familiar per capita – Brasil (2017-2018)

Fonte: Texto para Discussão do IPEA “Tributação Indireta: Alíquotas Efetivas e Incidência sobre as Famílias” (2022)

  1. O Brasil é um dos únicos países do mundo a não tributar dividendos

A isenção de imposto sobre os dividendos no Brasil foi estabelecida em 1995, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, por meio da Lei nº 9.249/1995, que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1996. A lei alterou a legislação do Imposto de Renda, isentando da tributação os lucros e dividendos pagos pelas empresas a pessoas físicas residentes no país. A justificativa à época era evitar a “bitributação”, já que os lucros das empresas já haviam sido tributados na pessoa jurídica. Este arranjo tão conveniente aos empresários não existe em nenhum outro lugar do mundo, com a exceção da Estônia e Letônia. E obviamente que o argumento não se sustenta aos dados.

Mesmo se somarmos a tributação do Imposto de Renda sobre Pessoa Jurídica (IRPJ) com o Imposto de Renda sobre Pessoa Física (IRPF) das empresas e empresários brasileiros teremos uma tributação muito inferior à média global. Como podemos ver na Tabela 1, o Brasil tem a quarta menor tributação sobre lucros mais dividendos na comparação da OCDE, somando 32,2%. E muito inferior aos EUA, baluarte do pseudo-liberalismo, que cobra um total de 46,9% em lucros e dividendos.

Vale lembrar que estamos falando em termos legislativos. Muitas empresas brasileiras não pagam efetivamente 32,2% do seu lucro em IRPJ, por conta de uma série de mecanismos legais de elisão fiscal, benefícios tributários e opções de regime tributário – como o lucro presumido, incentivos e renúncias fiscais, juros sobre capital próprio, planejamento tributário etc.

Tabela 1 – Brasil e países da OCDE: alíquotas legislativas do IRPJ, do IRPF sobre dividendos e tributação combinada sobre o lucro (2025) (Em %)

País IRPJ (%) Dividendos (%) Alíquota Agregada (%)
Estônia 22 0 22
Hungria 9 15 22,7
Grécia 22 5 25,9
Brasil 34 0 32,2
Polônia 19 19 34,4
Suíça 19,6 22,2 37,4
Nova Zelândia 28 39 39
República Tcheca 19 15 31,8
Turquia 25 40 40
Costa Rica 30 15 40,5
México 30 42 42
Finlândia 20 34 43,1
Itália 24 26 44,2
Japão 29,7 20,3 44
Áustria 25 30,5 44,2
Suécia 20,6 30 44,4
Chile 27 40 44,5
Estados Unidos 25,6 28,7 46,9
Austrália 30 47 47
Bélgica 25 30 47,5
Espanha 25 30 47,5
Colômbia 35 39 48
Alemanha 30,1 26,4 48,5
Países Baixos 25,8 31 51,5
Portugal 30,5 28 50
Noruega 22 35,2 50,6
Reino Unido 25 39,4 54,5
Dinamarca 22 42 54,8
Canadá 26 39,3 55,3
Irlanda 12,5 51 57,1
França 36,1 36 57,2
Coreia do Sul 26,4 49,5 59,1

Fonte: OECD Data Explorer apud. Carta de Conjuntura Número 67 do IPEA do 2 ° Trimestre de 2025

  1. Atual arranjo tributário gera carga maior para os pobres e menor para os ricos

Com tributação excessiva no consumo e isenção nos dividendos, a carga tributária pesa muito mais sobre os pobres do que sobre os ricos. Como podemos ver no Gráfico 4, a carga tributária em relação à renda dos 10% mais pobres é de 26,4%, enquanto para os 10% mais ricos este percentual cai para 19,2%. Os 10% mais pobres no país pagam 7,2 pontos percentuais a mais de tributos do que a média, o que é claramente uma inversão da lógica de justiça tributária.

Gráfico 4 – Incidência da tributação direta e indireta na renda total, segundo décimos de renda familiar per capita – Brasil (2017-2018) (Em %)

Fonte: Texto para Discussão do IPEA “Tributação Indireta: Alíquotas Efetivas e Incidência sobre as Famílias” (2022)

  1. De onde vem o dinheiro dos 1%, 0,1% e 0,01% mais ricos?

Segundo estimativa do pesquisador do IPEA Sérgio Wulff Gobetti com dados de declaração do IRPF, publicada na Nota Técnica “Progressividade tributária: diagnóstico para uma proposta de reforma”, os 1,6 milhões de indivíduos que compõem o 1% mais rico do país recebeu 23,6% da Renda Nacional Disponível Bruta (RNDB) em 2022, enquanto os 153,6 mil indivíduos que compõem o 0,1% mais ricos receberam 11,9% da RNDB, e, por fim, os 15.366 indivíduos mais ricos, que compõem o 0,01% do topo da pirâmide, abocanhou 5,8% da renda nacional.

Como podemos ver na Tabela 2, quanto mais rico se é, maior é a participação da renda de capital e rural. Os 0,01% mais ricos tiveram 81% de sua renda advinda destes segmentos. Isto porque são empresários, diretores e CEOs, rentistas, grandes produtores rurais etc. E com isto, grande parte de suas rendas fica isenta do IRPF.

Tabela 2 – Decomposição da renda dos declarantes da IRPF (2022)

Percentil População Renda total (conceito RNDB) [R$ milhões] Salários, benefícios sociais, aluguéis e rendas mistas [R$ milhões] Atividade rural (pessoal) [R$ milhões] Juros, lucros e ganhos de capital [R$ milhões] Outras diversas [R$ milhões] % renda capital ou rural
0,01%+ 400.083 22.997 22.950 300.860 53.275 81%
0,1%+ 813.735 77.568 58.452 566.300 111.415 77%
1%+ 1.618.599 406.181 94.881 897.842 219.696 61%
5%+ 2.719.899 1.161.174 126.514 1.119.753 312.457 46%
10%+ 3.379.385 1.709.350 136.571 1.186.390 347.074 39%
Declarantes 4.249.649 2.499.529 142.430 1.235.100 372.590 32%
PopAdulta 6.860.933 5.110.813 142.430 1.235.100 372.590 20%
1% / Pop 23,60% 8% 67% 73% 59%

Fonte: Carta De Conjuntura Número 65 do IPEA do 4° Trimestre de 2024 – “Progressividade tributária: diagnóstico para uma proposta de reforma”

  1. Isentar o IR até R$ 5 mil e taxar os super-ricos em pelo menos 10%

Tendo como bandeira avançar na Justiça Tributária, o Governo Lula enviou ao Congresso o projeto de lei que propõe, a partir de 2026, a completa isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil por mês (antes a faixa era R$ 2.259,20), beneficiando cerca de 10 milhões de contribuintes, e elevando para 20 milhões o total que ficará isento do IR, além de diminuir o imposto para quem recebe entre R$ 5 mil e R$ 7 mil mensais. Com isto, 90% da população que declara IR passará a estar isento ou terá uma redução na sua alíquota efetiva.

Para compensar a renúncia fiscal de aproximadamente R$ 27 bilhões, o PL institui uma tributação mínima escalonada para rendas acima de R$ 600 mil por ano, começando em 2,5% (para R$ 750 mil) e alcançando até 10% para quem recebe mais de R$ 1,2 milhão — atingindo cerca de 141 mil pessoas que hoje pagam alíquotas efetivas muito inferiores. Isto impactará apenas 141,4 mil contribuintes (0,13% do total), que passarão a contribuir pelo patamar mínimo, 0,06% da população total do País. São pessoas que recebem mais de R$ 600 mil por ano e que não contribuem atualmente com alíquota efetiva de até 10% para o Imposto de Renda.

  1. Não acaba com o problema, mas é um grande passo para a Justiça Tributária

Segundo Carta de Conjuntura publicada neste mês de julho pelo IPEA, a alíquota efetiva dos mais ricos deveria ser maior, de 14,1%, simplesmente para se igualar à classe média. Ou seja, os ricos continuarão pagando menos impostos do que os mais pobres no Brasil. Mas já é um começo.

Além disto, é preciso aumentar mais a tributação sobre patrimônio dos ricos, sobre os dividendos, sobre bets, empresas primário-exportadoras (fim da Lei Kandir), diminuir as isenções fiscais e um longo etc., para que possamos assim diminuir a carga tributária sobre o consumo, e ir ajustando o nosso sistema tributário rumo a um sistema “normal”, em que quem ganha mais, paga mais.

Sabemos que a conjuntura não nos é favorável. A extrema-direita e o Centrão — verdadeiras correias de transmissão dos interesses mais mesquinhos do mercado financeiro, do agronegócio e da elite do atraso — formam uma maioria esmagadora no Congresso. O Plebiscito deve ser uma ferramenta de mobilização popular para garantir a aprovação integral da proposta, que, mesmo assim, já é bastante modesta. No entanto, o relator do projeto na Câmara, Arthur Lira, já propôs alterações que isentam parcelas da renda dos grandes produtores rurais. Ainda que a maioria da população apoie o projeto e o ambiente político pareça relativamente propício, é preciso estar atento: tentativas como a de Lira serão muitas, sempre com o objetivo de desidratar o projeto e preservar os privilégios de quem vive à custa do suor alheio.

* Eric Gil Dantas é economista do Ibeps e da AEPET-BA

 


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