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Por Pedro Augusto Pinho

INTRODUÇÃO

Estas reflexões decorrem de palavras. Tiveram, como todo produto cultural, um tempo e um lugar. Porém marcaram situações que foram aproveitadas pelos poderes de outros tempos e de outros lugares até adquirirem sentidos excludentes, segregadores. O poder que não surja do povo sempre necessitará apontar inimigos, criar cizânia.

Thomas Carlyle, na “História da Revolução Francesa” (1837), escreve: “toda a morte é apenas a morte-nascimento”. Este historiador e ensaísta escocês, que entendeu as mudanças pelas quais a sociedade humana está sempre percorrendo, não pôde deixar de assinalar que o “ceptro está partindo das mãos de Luís” mas sua posse continuará mudando de mãos.

Os termos “esquerda” e “direita” apareceram durante a Revolução Francesa de 1789, quando os membros da Assembleia Nacional se dividiam em, à direita do presidente, os partidários do rei e os simpatizantes da revolução, à sua esquerda. E, desde então, passou-se a entender que a esquerda desejava mudanças, maior participação e atendimento ao povo em geral, e a direita a manutenção do status quo, do mesmo sistema e poder.

Porém, a partir do retrocesso das sociedades euro-estadunidenses e suas colônias com a vitória das finanças apátridas, em 1989, direita e esquerda passaram a indicar a submissão ou a independência aos mandamentos do decálogo “Consenso de Washington”, elaborado por financistas sediados na capital dos Estados Unidos da América (EUA), que nada tinha de consensual, pois impedia até mesmo o desenvolvimento do capitalismo industrial.

Porém ficou o rótulo empregado, ora por ignorância ora por má fé, principalmente nas comunicações políticas das mídias hegemônicas. Há sentido?

I PARTE

O intelectual senegalês, Alioune Diop (1910-1980), chamado por Léopold Senghor de “Sócrates Negro”, festejando a publicação do beninês Albert Tévoédjrè (1929-2019), em 1958 (“L’Afrique Révolté”, Présence Africaine, Paris), exclamou: “eis que nova geração de africanos eleva sua voz”. Uma voz de esquerda? De direita?

Recordando Carlyle, a voz que então pedisse o capitalismo seria a voz da esquerda, para a região que lutava pelo seu reconhecimento, conforme as distintas formações étnicas. Pois toda a África, que participara da II Grande Guerra como colônia, exigia sua individualidade e sua independência. A região de Diop, Senghor, Tévoédjrè, por exemplo, compreendia a imensidão da África Ocidental Francesa.

A Carta do Atlântico (1941), firmada pelo primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, e pelo presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Franklin Delano Roosevelt, parecia tratar apenas da Europa, pois nem os EUA ainda havia formalmente nela sido envolvidos. Os segundo e terceiro pontos, de seus oito, não deveriam despreocupar senão europeus – os ajustes territoriais devem concordar com os desejos das populações afetadas e o reconhecimento do direito à autodeterminação dos povos – inimagináveis que eram para africanos e asiáticos.

O caminho para independência na África passou pela “negritude”, movimento que juntou as maiores expressões da intelectualidade: Aimé Césaire, Léopold Senghor, Alioune Diop, Jomo Kenyatta, Kwame Nkrumah, Julius Nyerere, Félix Houphouët-Boigny, Ahmed Sékou Touré entre outros.

Porém encontrou nas mãos colonizadoras a mobilização forçada para a guerra que não era deles, e os que permaneceram em suas casas sofreram tanto quanto os alistados. Além da guerra, ao prestar serviço militar, na Birmânia ou na Índia, encontraram a mesma sede da independência e lá ganharam conhecimentos de estratégias e táticas de luta. E, ao fim, vitoriosos, não lhe aguardavam quaisquer prêmios, recompensas ou indenizações, fazendo-os notar, sem qualquer dúvida ou desculpa, que europeus e africanos seriam sempre tratados diferentemente.

Via-se, então, que as dimensões da esquerda-direita não se davam apenas no tempo, também ocorriam nos espaços, eram diferentes conforme os lugares.

PÓS-CONSENSO DE WASHINGTON

Mais de trinta anos se passaram desde a enunciação do Consenso de Washington. E tudo piorou muito para as sociedades, as coloniais e as colonizadas.

No entanto, a farsa da globalização permanece. Global nem o ar que respiramos, frio aqui, quente ali, limpo cá, poluído acolá. Tudo que ocorre tem o lugar e o tempo, inclusive a esquerda e a direita.

O mundo multipolar é o futuro, é a transformação, a esquerda, se nosso âmbito de análise são os continentes. Se focamos um determinado e único lugar, a esquerda pode ser o governo forte, que tenha o projeto de desenvolvimento integral, não somente econômico, para seu país, como veremos em Singapura, “cidade dos leões”.

Pela ilha de Temasek, de 641 km², ao sul da península Malásia, chegaram, na era cristã, chineses, que formam atualmente 76% da população. Até o século XVI, por lá andaram os mongóis, os reinos vizinhos de Sião, Java e Malaca, até aportarem os portugueses, que a abandonaram em 1613. Ficou por muito tempo entregue à sorte. Em 1819, o inglês Thomas Stamford Raffles constrói um porto, o posto comercial Singapura, da Companhia Britânica das Índias Orientais. Ora junto à península, ora isolada, o arquipélago de Singapura ficou sob gestão colonial do Reino Unido até o pós-II Grande Guerra.

Em maio de 1959, o Partido da Ação Popular ganhou por vitória esmagadora. Singapura tornou-se estado autônomo dentro da Commonwealth, tendo Lee Kuan Yew como o primeiro primeiro-ministro.

A República de Singapura foi conquistada em agosto de 1965, com Lee Kuan Yew como primeiro-ministro e Yusof bin Ishak como presidente. As revoltas raciais surgiram mais uma vez em 1969. Em 1967, o país co-fundou a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN). Lee Kuan Yew tornou-se primeiro-ministro, e o país passou da economia do Terceiro Mundo para o abeiramento ao Primeiro Mundo em única geração.

O atual primeiro-ministro, Lee Hsien Loong, encontra-se em seu terceiro mandato, e ocupa o cargo desde 2004. Ele é o filho mais velho de Lee Kuan Yew, falecido em março de 2015.

Singapura é exemplo de esquerda ou direita?

Que tal olharmos para outra vertente? Não seria Lee Kuan Yew, um novo modelo de déspota esclarecido, ao modo europeu, desejoso de trazer para seu país ideais de progresso, reforma e bem-estar para o povo. Ou de governo de sultões, reis, imperadores ou paxás asiáticos, que já se constituíram, e ainda existem no Oriente, e que entendem ser sua obrigação fazer o povo feliz.

Observemos a República Popular da China (China). Adota modelo de governo de participação popular, o socialismo com características chinesas, que se volta inteiramente para a promoção do bem-estar do povo, definido como o dono do País. Há sentido em denominar Singapura de direita e China de esquerda, se ambos conseguem, em dimensões de espaço e população bastante distintos, o mesmo resultado de país sem desemprego, com elevada tecnologia, sem fome e sem miséria?

O Consenso de Washington tentou o impossível: homogeneizar o mundo altamente diversificado e que tem sua beleza, e por incentivo, exatamente as diferenças. E o homogeneizou pelo pior dos lados, pela apropriação de bens sem produção, pela permanente e indesejável concentração de rendas e riquezas, que coloca o mundo mais pobre, as pessoas mais desprovidas e a vida sempre mais difícil.

Assim, surgem na propaganda dominada pelos capitais apátridas, fruto do Consenso de Washington, opções sem sentido, classificações inadequadas, simplificações grosseiras, que exigem população de imbecis para sobreviver. E se vê, desde 1989, que a instrução virou farsa, que apenas as teses financiadas pelos capitais apátridas, por estapafúrdia que sejam, ganham notoriedade.

E o mundo e a vida das sociedades regridem, perguntando se é à esquerda ou à direita…

INTERVALO

Havia em contos e romances, retirados das realidades históricas orientais, a figura do rei bondoso. O que faziam estes soberanos para terem tal avaliação? Entendiam que a justiça e a paz no reino, entre todos seus habitantes, eram sua responsabilidade e dela não fugiam.

O que fazem os dirigentes subordinados ao Consenso de Washington? Primeiro ignoram o seu país, pois tudo é “mercado”. E não só adotam esta ação entreguista dos bens nacionais, eles também provocam o ódio entre irmãos.

Temos recente exemplo deste governante entreguista e inimigo do povo aqui, no Estado de Minas Gerais, local de nascimento do mártir da independência brasileira, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, cantado em prosa e verso por todos os brasileiros.

Romeu Zema (Novo), atual governador de Minas Gerais, tem cidadania italiana, e, de acordo com portal G1, da globo.com, seu comentário sobre “a criação de uma aliança para defender interesses do Sul e do Sudeste, foi classificado quase como uma “declaração de guerra” entre as regiões do país”.

Desde quando o patrono político de Zema e do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicano), seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro, passaram a ter expressão política nacional, o entreguismo, a falta de patriotismo, e o incentivo à ignorância e à luta entre brasileiros, dividindo-os por ideologias, regionalismos, níveis de instrução, serem civis ou militares, e por identitarismos vários, passou a constituir pregação dos governos. Ou seja, o contrário do bom dirigente, que tinha na paz e na justiça os focos da gestão.

II PARTE

Novamente a África se levanta. O mundo ainda lhe é muito hostil, porém sua consciência de luta já evoluiu, possibilitando empreender novamente a conquista da soberania. O antropólogo inglês A. R. Radcliffe-Brown, no Prefácio de “African Political Systems” (Meyer Fortes e Evans-Pritchard, 1940) escreve que “a estrutura territorial fornece a moldura, não só da organização política, qualquer que ela seja, e de outras formas de organização social, como a econômica,” e, adiante, “ao estudar a organização política, temos de lidar com a manutenção ou estabelecimento da ordem social dentro de um quadro territorial, pelo exercício organizado de autoridade coercitiva, por meio da utilização ou da possibilidade de usar a força física”.

As manifestações independentistas africanas, citadas no início deste artigo, ocorridas há mais de meio século, encontraram a oposição dos “vencedores da guerra”: EUA e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS); que, por caminhos e objetivos distintos, queriam instalar na África suas colônias, onde houvera as europeias: colônias econômicas e colônias ideológicas.

A África de Tévoédjrè lançou as sementes, porém estas não floresceram.

Temos nova África, que surge com crescimento populacional e a compreensão de quão imensas são suas riquezas naturais. Um tanto o que gostaríamos de ver despontar no Brasil; não mais o ufanismo místico do Conde de Afonso Celso, porém a consciência crítica e construtiva de Darcy Ribeiro. E, novamente, daquela antiga África colonial francesa, ouvimos, nesta terceira década do século XXI, os clamores da independência.

ALVORADA AFRICANA

A Cúpula Rússia-África, realizada em 27 e 28 de julho de 2023 em São Petersburgo, reunindo Vladimir Putin, 17 chefes de Estado e delegações de 49 países africanos, demonstrou a vontade africana de encetar, novamente, a luta por sua efetiva independência. E do apoio que a Federação Russa está disposta a conceder, tendo, já no evento, comunicado o perdão a países africanos da dívida de 23 bilhões de dólares estadunidenses.

Tem aquele continente a condição demográfica. É o único que a ONU reconhece crescimento populacional nas próximas três décadas.

Ibrahim Traore, jovem líder de Burkina Faso, assim se expressou na Cúpula Rússia-África: “Quando o povo decide se defender, eles (os imperialistas) nos chamam de milícias. Mas esse não é o problema. O problema é que há chefes de Estado africanos cantando as mesmas canções que os imperialistas, chamando-nos de milicianos, tratando-nos como homens que não respeitam os direitos humanos”. “Os chefes de Estado africanos devem parar de se comportar como marionetes, que dançam cada vez que os imperialistas puxam os cordelinhos, terminamos com mais de oito anos da forma mais bárbara de manifestação, a violência do neocolonialismo, do imperialismo e da escravidão que impunham a nosso país”, disse o capitão Traore. E concluiu: “o escravo que não é capaz de assumir sua revolta merece viver no seu lamento”. “Nossos povos disseram: basta. Glória a nossos povos! Dignidade aos povos! Vitória aos povos! Pátria ou morte. Venceremos!”.

MALI, capital: Bamako. Território: 1.240.000 km². População (2022): 21.691.072 habitantes. Eletricidade per capita (2020): 153 kWh. IDH (2021): 0,428. Ex-colônia francesa é politicamente independente desde 22 de setembro de 1960.

BURKINA FASSO, capital: Uagadugu. Território: 274.000 km². População (2022): 22.313.534 habitantes. Eletricidade per capita (2020): 74 kWh. IDH (2021): 0,449. Ex-colônia francesa é politicamente independente desde 5 de agosto de 1960.

NÍGER, capital: Niamey. Território: 1.267.000 km². População (2022): 26.412.604 habitantes. Eletricidade per capita (2020): 47. IDH (2021): 0,400. Ex-colônia francesa é politicamente independente desde 3 de agosto de 1960.

Do porta-voz do Departamento de Estado dos EUA: “Secretária de Estado Adjunta Interina, Victoria Nuland, viajou a Niamey para expressar a nossa grande preocupação com os desenvolvimentos no Níger e o nosso compromisso resoluto de apoiar a democracia e a ordem constitucional”. A senhora Nuland esteve no Brasil em 2011, certamente preparando o golpe de 2016 na presidente Dilma Rousseff.

Existe a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) que será a “Ucrânia” da guerra que os EUA pretendem promover contra os recém-independentes: Mali, Burkina Faso e Níger.

Níger, além da maior população e pobreza, tem posição geográfica muito importante para a ação imperialista dos EUA e seus aliados europeus, além de ser dos maiores produtores de urânio do mundo. Ele liga a produção de petróleo da Nigéria, realizada por empresas euro-estadunidenses, ao sistema de escoamento dos dutos argelinos, suprindo a Europa, pelo embargo e sabotagens no fornecimento da Rússia.

E a imprensa ocidental, uníssona, irá afirmar que se está restabelecendo a democracia, quando se estará, efetivamente, reimplantando a escravidão naquela parte da antiga África Ocidental Francesa. Direita ou esquerda?

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado, ex-membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra (ESG), e atual presidente da AEPET – Associação dos Engenheiros da Petrobrás.


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